CONTO | O grão de café & a folha de chá

 

Capa por Eloanne Cerqueira

Era fim de tarde e ele terminava de descer do ônibus com a mochila pesada em suas costas e a bolsa do violino em uma das mãos. Respirou fundo e suas pálpebras caíram levemente, estava cansado. Muito cansado. Não imaginou que viver em outro continente seria tão difícil. Sua mãe o avisou, é claro, mas é óbvio que ele não ouviu. Com muita insistência, seus olhos abriram e a primeira coisa que avistou foi uma cafeteria. Fome ou sede não eram coisas que perturbavam o rapaz no momento, mas O grão de café & a folha de chá era sua única saída. Talvez alguém ali tivesse a boa vontade de informa-lo como chegar em seu apartamento, porque sinceramente, não fazia a menor ideia de como chegar até lá.

Cursar música na Coreia sempre fora um sonho na vida de Oliver. Mesmo crescendo no Canadá e tendo toda a facilidade que precisava em seu país, queria ir para o outro lado do mundo onde a vida de artista parecia ser as mil maravilhas. Lauren, sua irmã mais nova, sempre mostrava inúmeras apresentações de grupos coreanos e o interesse pelo ensino superior daquele país só aumentava no garoto. Os grupos de k-pop eram realmente muito bons e ele tinha talento para ser bom também. Então, por que não juntar o próprio talento com um ensino maravilhoso? Tinha tudo para dar certo, pelo menos na teoria. As primeiras semanas no novo país foram as mil maravilhas. Logo que se instalou, resolveu caminhar pela praça ao lado de seu fiel cachorro apenas para um passeio. Seu animal de estimação era realmente muito bonito o que chamava a atenção das meninas que passavam e as faziam ir acariciá-lo. Todo cheio de marra, o rapaz as cumprimentava em seu idioma de origem, o inglês, deixando as moças deslumbradas e um Oliver confiante.

Viu só, mãe? Eu disse que seria uma boa me mudar para cá, pensava ele em uma resposta aos sermões que recebeu quando inventou essa mudança.

Mas as aulas começaram e com elas vieram as dificuldades. Os professores da Universidade de KyungHee eram exigentes, fazendo seus alunos treinarem mais que o habitual para que notassem uma melhoria. Inúmeras foram as noites que ia dormir revisando partituras de seu instrumento e várias as broncas que ouvia dos vizinhos do prédio pelo barulho. Na primeira avaliação semestral, Oliver apresentou um concerto maravilhoso que conseguiu aplausos de pé dos colegas de classe, mas seu professor apontou tantos erros que o fez fechar a cara ali mesmo, no palco. Conseguiu 85% da nota, mas ainda assim não era o bastante. Naquele dia em questão escrevera uma música durante a aula e fora pego pelo professor. Sr. Kang deu um longo discurso, alegando que estavam ali para aprender notas e compassos, não a escrever rimas de namoricos. Oliver manteve a cara fechada até o final da aula, saindo da sala antes mesmo do professor finalizar a frase ao dispensá-los. Caminhou até a estação de metrô, entrando no primeiro que viu, sem se dar ao trabalho de notar para onde iria. Divagava sobre os reais motivos daquele sermão; talvez fosse xenofobia da parte do professor, talvez fosse só o próprio Oliver que fantasiara demais aquela vida tão longe.  Estava tão perdido em pensamentos que só depois de uns quinze minutos se deu conta de que não sabia para onde ia. Perguntou ao homem ao seu lado para que estação estavam indo, levantando as pressas quando se deu conta de que cometera o erro mais típico de forasteiros, descendo na parada mais próxima.

O estabelecimento era bem simples e bastante aconchegante, o rapaz até se sentiu menos tenso só de adentrar ali. As paredes tinham um tom claro e diversos pôsteres de artistas locais, reconhecendo alguns dos grupos como favoritos de sua irmã. As mesas estavam todas ocupadas por casais — que Oliver julgou extremamente sem-graça, talvez fosse o mau humor. Sentou-se em frente ao balcão e tirou a mochila das costas.

— Olá cliente! O que você deseja? — Uma voz doce e bem agradável perguntou do outro lado.

— Achar o caminho de casa seria o mais urgente — disse sem olhar a atendente, arrancando uma risada baixa da moça.

— É comum estrangeiros se perderem, não é? — Oliver arregalou os olhos.

Sim, era canadense, mas seus traços eram herança chinesa de seus pais. Logo, não era entendido como estrangeiro até que abrisse a boca e se perdesse no idioma ainda novo. Ou aquela garota era vidente ou ele estava dando muito na cara que era um completo perdido. Talvez tivesse pronunciado alguma coisa errada e sequer se dera conta.

— Como você... sabe? — Perguntou finalmente olhando na direção da garota, ficando sem palavras ao encará-la. A atendente era um pouco mais baixa que ele, ou pelo menos parecia ser. Os cabelos eram castanhos e aparentemente longos, já que mesmo amarrados em um rabo de cavalo estavam pouco acima dos ombros. Pequenos óculos arredondados adornavam seu rosto e tinha os olhos ainda menores, pois voltava a rir da pergunta feita.

- Você tem sotaque — deu de ombros e apontou para a própria boca, fazendo Oliver se sentir um idiota. Além de perdido, irritado com o professor, extremamente longe de casa, ainda tinha pagado de idiota na frente de uma menina bonita.

— Ah... é isso — suspirou e torceu os lábios, fazendo a atendente rir novamente e esconder o riso com uma das mãos. Atitude que o garoto julgou bem... fofa — então... — encarou o pequeno crachá preso a blusa da menina, se sentindo ainda mais constrangido por passar tempo demais — Hyesun, né?

— Heesun — corrigiu ela, rindo mais abertamente da cara de derrotado que ele fez com a correção — não se preocupe, muitas pessoas costumam errar assim — era uma completa mentira, mas decidiu tentar confortá-lo daquela maneira. O garoto não pareceu acreditar muito, mas o sorriso pequeno que surgiu em seus lábios a agradou.

— Pelo menos eu não sou burro sozinho — deu de ombros e então se ajeitou na cadeira, para pelo menos tentar não dar mais nenhuma mancada — eu vou querer um café puro e grande, por favor! 

 A garota assentiu e saiu, não demorando nem um minuto para voltar com uma grande caneca e colocá-la sobre o balcão, fazendo um sorriso pequeno surgir nos lábios de Oliver mais uma vez. Como em qualquer outra situação como aquela, Heesun colocaria a jarra do café de volta ao seu lugar e faria outra coisa longe do cliente em questão, já que não era educado continuar ao seu lado. Porém, naquele momento, queria poder ajudá-lo em seu problema, ou simplesmente conversar para que pudesse animá-lo. Já Oliver sabia que se puxasse assunto com ela poderia parecer só mais um estrangeiro tentando tirar vantagem das coreanas e não era bem isso que queria. Heesun tinha sido simpática e não era só porque deveria ser; estava sendo agradável porque ela era agradável. E bastava só isso para que quisesse falar ainda mais com ela.

— Onde você mora? Talvez eu possa te ajudar a voltar pra casa — era notável o receio na voz dela, mas se Oliver demonstrasse desconforto ela apenas se desculparia e sairia dali. 

— Suo-gu — disse Oliver convicto, sorrindo pequeno com a caneca rente aos lábios. Talvez ela não pudesse perceber, mas ficou aliviado por não ter que implorar por sua ajuda.

— Seo-gu, você quis dizer — voltou a rir, agora um pouco mais alto. Era engraçada a forma que ele tentava pronunciar as coisas. O rapaz soltou um gemido em reclamação o que a fez apoiar-se no balcão e rir de maneira contida, não queria que ele pensasse que estaria zombando dele — você veio de metrô, não é mesmo?

— Eu ia perguntar como você sabe, mas lembrei que o burro aqui sou eu.

— Yah, não diga essas coisas! — Percebeu então que desde a hora que o rapaz chegou, ela não havia parado de rir. O quão boba poderia ser? — Você só se atrapalhou na estação e veio parar em Wonmi-gu. 

— Eu vim parar onde? — Achou aquele ‘yah’ dito por Heesun algo realmente fofo. Já tinha ouvido outras pessoas dizerem aquilo, mas só nela havia sido... fofo.

— Wonmi-gu — Notou que o café dele já estava terminando e foi até a cafeteira, despejando um pouco mais na caneca. Oliver agradeceu.

— De qualquer forma eu não sei pronunciar isso — deu de ombros e ela negou com a cabeça. Heesun pensou em uma coisa, mas imaginava que poderia soar como uma atitude ruim. Porém já estava ficando tarde e ele poderia se perder de novo se ela só explicasse.

— Eu também moro em Seo-gu — foram suas palavras depois de um longo suspiro. Oliver parou e arregalou os olhos, só podia ser ação divina. Ele se perde, vai parar em um lugar aleatório, encontra uma garota bonita e ela mora no mesmo bairro que ele? Só podia ser brincadeira. A garota suspirou e vendo que não haveria comentário dele, continuou — e se você quiser, eu posso...

— ... levar o estrangeiro burro até o lugar que precisa ir — A interrompeu, completando sua frase e os dois abriram sorrisos largos, o que gerou aqueles risinhos bobos.

— Vou ser liberada em meia hora — só então desfez o contato visual, afastando-se do balcão e voltando a ficar de pé.

— Espero todo o tempo do mundo — voltou a beber do seu café, o qual estava bem mais quente do que pensou, desviando o olhar para que não parecesse um idiota.


Logo mais alguns clientes chegaram e foi necessário que Heesun deixasse o garoto de lado por alguns instantes. Oliver pôde notar que ela era sempre agradável com as outras pessoas, mas não tanto quanto havia sido com ele. Algumas vezes os olhares se encontravam e a atendente desviava envergonhada fazendo o canadense rir. A meia hora chegou ao fim e após trocar o uniforme e pegar o casaco, a garota se despediu das colegas, saindo do estabelecimento ao lado do estrangeiro que até agora não sabia o nome e se sentia muito tímida para perguntar. Seguiam até a estação de metrô mais próxima ao lado um do outro e depois que os comentários sobre a cafeteria se cessaram, um silêncio constrangedor se fez presente. Oliver pensava em como era burro o suficiente por não pensar em nada decente para puxar assunto e Heesun pensava de alguma maneira para perguntar o seu nome sem parecer uma boba. Mas logo chegaram a estação e a garota passou a lhe explicar por onde deveria ir e o que fazer caso se perdesse de novo. 

O horário não era lá o mais propício para que estivessem confortáveis no metrô, muito pelo contrário, as cabines estavam tão cheias que poderia ser difícil até para respirar. Heesun se segurou — da maneira mais leve possível para não incomodar — no braço do estrangeiro, tentando não se perder e também porque era baixa demais para alcançar o apoio da parte de cima. Ao notar isso, Oliver achou mais viável passar o braço pela cintura da garota, assim ela se sentiria mais firme, mas não demorou muito para repensar suas atitudes e se sentir constrangido por ultrapassar os limites. De início, a garota ficou desconcertada com a atitude, mas logo depois notou que era mais fácil de se apoiar — e, porque não, mais confortável também.

— Bom, basicamente é só isso que você precisa fazer — disse Heesun ao fim de sua explicação sobre estações de metrô e pontos de ônibus. Já tinham chegado em Seo-gu e agora caminhavam até os prédios e condomínios.

— Amanhã eu não vou lembrar nem o nome daqui do bairro — resmungou Oliver, fazendo-a rir pela milionésima vez naquele dia. 

— Não seja tão pessimista —a garota parou. Estavam em frente a um longo prédio em diversos tons de verde — eu moro aqui. Pelo que você me falou, o seu apartamento é no prédio no final da rua, não é?

— É sim, senhora — sorriu meneando a cabeça e concordando com a sua fala. Ela era muito esperta, e ele muito burro. Julgou ser uma ótima combinação — posso recorrer a você sempre que eu me perder?

— Só se você disser o seu nome — Heesun deu de ombros, tentando parecer casual, vendo-o arregalar os olhos.

— Ah... nossa! Me desculpe, eu sou Oliver — o sorriso em seu rosto era o mais tímido que já tinha mostrado e provavelmente estava vermelho. Estendeu uma mão para ela e a outra coçava a nuca rapidamente.

— Heesun — deu ênfase no final de seu nome, lembrando-se do erro cometido por ele mais cedo. Apertou sua mão ligeiramente, adornando o mesmo sorriso tímido no rosto — agora eu preciso ir mesmo, me desculpe.

— Não, tudo bem. Eu já te aluguei demais por um dia só — e voltaram aqueles risinhos bobo em ambos tornando o momento ainda mais infantil do que já estava antes — obrigado e descanse — Oliver acreditou que se curvara o mínimo, porém fora exagerado o que a fez rir.

— Não se perca de novo — Hessun, sim, curvou-se de maneira leve e então seguiu para a entrada de seu prédio. Oliver a observou caminhar e então deu as costas, colocando as mãos em seus respectivos bolsos e indo em direção ao final da rua.

- Oliver! — Ouviu-a gritar. Virou-se um tanto curioso, a sobrancelha esquerda arqueada.

- 715 — sorriu de forma contida e usou da cabeça para apontar o prédio. O rapaz sorriu largo e assentiu com a cabeça, mandando uma piscadela para a garota que riu uma última vez, antes de finalmente entrar no prédio. 

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