CONTO | Começando de novo

 

Capa por Eloanne Cerqueira

Sentada em sua cama, olhava o céu que brilhava atrás do vidro da janela de seu quarto. Pesadas lágrimas caiam de seus olhos e tentava inutilmente reorganizar seus pensamentos. Era até engraçado a forma como as coisas aconteciam. Uma atrás da outra, sem um intervalo de tempo para descansar. Sentia o coração doer todas as vezes que se lembrava de como ninguém se importava com ela e seus sentimentos. 

Não, não era uma desilusão amorosa por um rapaz, como você está pensando. Era bem pior que isso.  Era uma desilusão com praticamente todos a sua volta. Sua família, amigos mais próximos, todos, de um jeito ou de outro, magoaram e pisaram no coração de Talita das piores formas possíveis. Era como sentar-se de costas para uma infinita escada. Desconfortável, você se remexe na cadeira e, com um descuido, rola escada abaixo. 

E ali, sentada em sua cama, olhando o céu um tanto quanto embaçado por conta das suas lágrimas que ainda caiam, Talita sentia como se não pudesse mais confiar em ninguém. Perguntava-se por que tudo aquilo acontecia consigo. Por que não com outras pessoas? Ou pior ainda, por que não com ela mesma, mas com um intervalo de tempo em que ela pudesse respirar? Às vezes que comentava por alto com um conhecido sobre o que estava passando, ouvia sempre a mesma coisa.

Vai ficar tudo bem.

O problema é que esse "vai ficar bem" estava demorando demais. Chegou até a acreditar que esse "bem" nunca existira. Abraçou suas pernas e soluçou. Lembrou-se então dele. De como o conhecera naquela tarde de quarta-feira, na cafeteria da faculdade. Tinha ido comprar algo para comer antes de ir para as aulas complementares de Legislação e Direitos Humanos. Ao se dirigir ao caixa, percebeu que tinha deixado a carteira em casa e não tinha nenhum trocado em seus bolsos. Xingou-se mentalmente por isso. Percebendo seu desespero, o rapaz puxou a conta de suas mãos, pagando pelo que a garota havia consumido. Talita então olhou para ele sem entender o porquê daquilo, recebendo um simples sorriso de volta. 

Descobriu que seu nome era Rafael e que estudava no mesmo andar que ela. E ao contrário do que você pensou, não descobriu nada em comum. Ela gostava de Nárnia, ele dizia que nenhuma saga superaria Star Wars. Talita era a garota das redes sociais, Rafael não gostava de se expor na rede. Ela gostava de dançar nas horas vagas, ele preferia passar a tarde jogando videogame. Mas por mais irônico que possa parecer, eles se deram bem, muito bem. E depois de muito tempo, Talita se viu feliz de novo. E dessa vez, como você está pensando, eles se tornaram, de certa forma, inseparáveis.  Ligava para Rafael quando precisava de uma opinião sobre o que vestir para ir à faculdade. Ele ligava para Talita quando ia àquela cafeteria e lembrava-se dela. Entretanto, seu histórico de amizades a deixava de certa forma, receosa em relação aquilo tudo. Achava que, quando estivesse no melhor dos seus dias, descobriria que falara mal dela a terceiros, ou que zombava do seu jeito bobo de conversar sobre certos assuntos. Porém esse dia nunca chegava, e aos poucos, ele ganhava a confiança de Talita sem nem ao menos perceber. 

Numa tarde de sábado que resolveram sair para conversar, Talita decidiu contar a ele sobre seu lado problemático e suas desilusões com as pessoas ao seu redor. Rafael ouviu tudo atentamente, raramente piscava. E, como era de se esperar, quando terminou de contar tudo, Talita chorava e soluçava como uma criança que acabara de cair de bicicleta. Vendo-a daquele jeito, o rapaz não pensou duas vezes e a abraçou. Pensava como as pessoas poderiam ser cruéis com alguém como ela. Tudo bem, Talita era difícil de lidar às vezes, ele bem sabia disso; quando por exemplo, estava irritada com os pais e tinha sido grossa com Rafael, mesmo não tendo feito nada. 

Todavia, não justificava como as pessoas a tratavam e de como pessoas podiam ser tão frias e tão falsas a esse ponto. Pensava também como uma pessoa tão sorridente e alegre como ela escondia tantas mágoas desse jeito. E se já não tinha motivos de sobra para admirá-la, isso só fez com que se sentisse ainda mais bobo em relação a ela. A garota, segundo os olhos de Rafael, conseguia da forma mais natural possível, discernir suas emoções. Ninguém precisava saber quando estava triste, afinal, eram sentimentos dela e só ela precisava saber. Surpresa com o ato repentino do rapaz, a única coisa que Talita fez foi retribuir aquele abraço. E como você já deve suspeitar, ela chorou ainda mais como uma criança nos braços de Rafael. O rapaz acariciava as costas dela, tentando acalmá-la. 

Mas ao contrário do que Talita pensou, ele não disse as famosas palavras vai ficar tudo bem. Porque Rafael sabia que não ficaria. Sabia que as pessoas que mais a magoavam eram as mais próximas dela. E que havia um longo caminho tortuoso pela frente até que, de fato, ficasse.

Depois daquele dia, Rafael passou a tratá-la melhor. Elogiava a garota do nada, perguntava como havia sido seu dia, ou até mesmo, fazia algumas carícias que não eram comuns na amizade deles antes. E assim, o garoto se viu apaixonado. Não que tenha sido algo ruim, de uma forma ou de outra, sabia que acabaria com aquele sentimento por Talita. Não tinha como não despertar algo por ela. 

O problema, no entanto, estava no coração dela. Rafael não sabia se estava preparado para ter em suas mãos um coração tão machucado. E acima de tudo, não queria ser o culpado por mais alguma mágoa dela. Logo, Rafael guardou seus sentimentos por Talita por longos e insuportáveis seis meses. Inúmeras foram às noites que ia dormir pensando nela. Talita e seu largo sorriso. 

Percebeu que já tinha passado da hora de tê-la só para ele. Deixaria de ser um covarde e assumiria que a amava. Sim, amava. Não sabia como, não sabia porque, só sabia que a amava. Achava que de certa forma, os céus a colocaram na vida dele. Porque não existiam mais explicações razoáveis sobre o sentimento que nasceu em seu coração. Decidiu que no dia seguinte a convidaria para sair. Iria levá-la a cafeteria que se conheceram depois das aulas do turno matutino, e lá diria tudo que guardou nesses três meses. E pensando em inúmeras formas de dizer isso a ela, o rapaz adormeceu.

Já fazia dezessete minutos que Talita estava ali, mas nada do garoto aparecer. Bufou e largou o celular sobre a mesa, apoiando o rosto sobre uma das mãos. Não demorou muito e o rapaz surgiu entre as pessoas que por ali circulavam. Sentou-se de frente para Talita, mas não olhou diretamente para ela. Suas mãos suavam. Seu coração estava à beira de uma taquicardia. Mas Rafael não iria desistir, não agora. A garota o chamou pelo nome, confusa com as reações do garoto, afinal, nunca o vira tão estranho como naquele dia. Ele respirou fundo e levantou o rosto, olhando-a nos olhos tão intensamente que, surpresa com tal atitude, Talita corou. Um pequeno sorriso brotou nos lábios dele e então disse. A garota acreditou que era uma simples brincadeira, mas pelo tom de voz usado por Rafael, percebeu que era a mais pura verdade. 

O garoto disse mil e um motivos para se apaixonar por ela, mas Talita não ficou para ouvir. Estava confusa, não tinha isso em mente. Não achava que pudesse despertar tal sentimento nele, nunca fora sua intenção. Não sabia o que pensar e então, fez o que o mais Rafael temia; pegou suas coisas, levantou e saiu. Deixando um Rafael largado, angustiado, confuso, e apaixonado para trás.

E ali, sentada em sua cama, olhando o céu um tanto quanto embaçado por conta das suas lágrimas que ainda caíam depois de se lembrar de tudo aquilo que passara ao lado dele e de como o garoto havia sido a única pessoa que pudera contar nos últimos meses, Talita percebeu que também era apaixonada por Rafael. Percebeu que seu coração acelerava só de pensar nele, percebeu que era com ele que ela sonhava. E percebeu, acima de tudo, que era de Rafael que ela precisava. Xingava-se mentalmente pelo fato de ter saído correndo mais cedo daquela cafeteria e estragado tudo. Se não fosse uma idiota sentimentalista que chorava por tudo, talvez ele tivesse a chance de ouvi-la dizer que também o amava. Sim, amava. Achava que de certa forma, os céus o colocaram em vida. Não havia explicações para como Talita se sentia bem perto dele. 

Decidiu, então, que era hora de parar de chorar e ir atrás do que estava perdendo. Enxugou as lágrimas e foi até sua bolsa a procura do celular, com a demora para encontrá-lo, virou a bolsa de cabeça para baixo, fazendo cair tudo que estava ali dentro para, enfim, encontra-lo. Pensou em uma mensagem de texto, mas demoraria demais para chegar, e consequentemente, para ter uma resposta. E o que Talita menos queria naquele momento era que as coisas demorassem. Discou o número que já sabia de cor e, depois de três toques, um “alô” preocupado atendeu a ligação.

Rafael, onde você está? – Já se levantava, procurando pelas sapatilhas que usava antes de chegar correndo.

Bom, depois que você saiu correndo de lá... fez uma pausa e Talita parou o que estava fazendo apenas para ouvi-lo — vim até a sua casa pra tentar falar com você, mas não tive coragem de tocar a campainha e estou na porta desde então. 

Talita desligou o telefone largando-o em cima da cama e, descalça, seguiu rapidamente até a porta de sua casa.

Ainda sem entender o motivo de a garota ter desligado o telefone daquela forma, Rafael olhou para cima e, vendo a janela do quarto dela, fechou os olhos, querendo nunca ter dito aquilo. Tinha sido responsável por mais um machucado no coração de Talita. Voltou a olhar a porta, depois olhou para o celular em sua mão, decidindo que iria desistir. Seria melhor ter ficado calado e continuar a sofrer por um amor, que agora, sabia que não era correspondido. Deu as costas para a casa de Talita e então ouviu a porta se abrir. Olhou para trás e a viu, com os olhos vermelhos e sorrindo. Rafael a olhou confuso, mas não teve tempo de compreender o que quer que fosse, pois Talita correra em sua direção e, enfim, o abraçou.

O coração de Rafael estava à beira de uma taquicardia mais uma vez, e ele não sabia o que fazer. Não entendia muito o rumo das coisas desde o encontro na cafeteria, mas não se importava. Tinha o corpo dela em seus braços e só isso bastava. Passou os braços pela cintura de Talita, e afundou o rosto em seus cabelos. Ao sentir o perfume da garota, apertou seus braços em volta dela, como se tivesse medo que de uma hora para outra, ela resolvesse sair correndo de novo. Talita desfez o abraço, pousando suas mãos sobre os ombros de Rafael; o garoto procurava respostas em seus olhos e ela apenas o olhava rindo, de como havia sido burra de tê-lo deixado tão assustado daquela forma. Não pensou duas vezes e, ficando na ponta dos pés, a garota selou os lábios de Rafael.

Ainda surpreso com a ação repentina de Talita, manteve os olhos abertos por alguns segundos, mas deixou-se entregar pela sensação que era beijar os lábios macios de sua amada. Seus olhos se fecharam de imediato e suas mãos subiram pelas costas dela. Talita subiu uma de suas mãos até os cabelos dele, fazendo-o se arrepiar com tal carícia. Rafael se sentia completo. Talita se sentia completa. Sendo de certo modo exagerado, o jovem acreditava que se morresse depois daquele beijo, morreria sendo o homem mais feliz do mundo. Estava tão apaixonado que já estava sendo bobo. Mas ele não se importava de ser bobo, o que importava era Talita. Ela e nada mais. 

O beijo foi perdendo a intensidade, passando a ser pequenos selos depositados nos lábios um do outro. A interrogação ainda estava presente nos olhos de Rafael, porém acompanhada de um belo sorriso. Talita sorria analisando o rosto do rapaz e vendo o quanto Rafael era perfeito para ela. Levou as duas mãos até o rosto dele, e então disse.

Os olhos de Rafael brilharam e o seu sorriso se alargou. Apertou os braços pela cintura de Talita e, fazendo certa força, levantou-a no ar, rodando-a rapidamente logo depois, arrancando risos divertidos da mesma. Colocou-a no chão e abraçou tão forte que por um momento a moça achou que morreria de asfixia. Depois de muitos beijos e declarações vindas dele, Talita pediu que o garoto se acalmasse e puxou-o pelo braço, para sentarem num banco muito conhecido pelos dois, o qual passavam inúmeras tardes jogando conversa fora. 

Talita sentou-se primeiro, puxando o garoto para sentar-se ao lado. Rafael passou o braço pelos ombros dela, entrelaçando as mãos. Ela encostou a cabeça no peito dele, sentindo as batidas fortes do seu coração.

Agora tudo ficará bem.

Você disse alguma coisa? – Perguntou ela, olhando confusa para o rapaz.

Eu não! – A resposta veio imediata, tão confusa quanto a pergunta. Talita então ignorou, devia ser apenas coisa da sua cabeça.

A partir de agora, tudo ficará bem. Eu prometo!

Foi então que percebeu que não era Rafael que estava falando. Era um timbre diferente, mas que era um tanto familiar a ela. Agora Talita tinha certeza de que toda aquela coisa sobre ficar bem, de fato, aconteceria. Olhou para cima e nunca tinha visto, em toda sua vida, um céu tão azul e tão brilhante, sorriu. 

A voz que ela ouvira, não era Rafael ou coisa da sua cabeça. Eram os céus confirmando que agora, finalmente, ela podia descansar. Aquela voz significava que a partir de agora tudo ficaria bem, pois tinha Rafael ao seu lado. E o amor que sentia por ela era do mesmo tamanho que o céu. E não era à toa, que os próprios céus o escolheram única e exclusivamente para ela.

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