CONTO | Não nos deixe


Capa por Eloanne Cerqueira

Imóvel.
Era a única palavra que descrevia o estado do seu irmão naquele momento. De certa forma ela já previa isso, a famosa “sensação ruim” tomava conta dela desde a hora que o viu sair sorrindo travesso como de costume. Os soluços de sua mãe do lado de fora davam para ser ouvidos dali e pareciam convidar lágrimas para que viessem aos seus próprios olhos e também se acabasse em choro. Os braços cruzados, os olhos fitavam qualquer coisa que não fosse o corpo deitado naquela cama inútil com inúmeros aparelhos ao seu redor para mantê-lo vivo, ou pelo menos tentar. Apertou os olhos e ergueu a cabeça, fitando o teto e respirando fundo.
- Eu, definitivamente, odeio você.
Suspirou e, é claro, não obteve resposta. Só aquele barulhinho insuportável do bip, indicando que ainda havia vida ali. Deus as costas e repousou as mãos na cintura, agora fitando o chão.
- Eu nem mesmo posso desabar porque nossos pais precisam de um alicerce. – Riu fraco, um riso sem ânimo. – Eu sabia que você era inútil, Josh. Só não esperava que fosse tanto.
Josh saíra escondido naquele dia, usando o carro da família. Não era como se fosse à primeira vez, o rapaz gostava de desafiar a autoridade do pai e sair quando bem queria com o veículo, avisando apenas sua irmã mais nova da escapada. Poucas eram as vezes que chegava a dirigir bêbado e Rainy dava graças aos céus por isso. Porém o mais velho da família McCurtney gostava de velocidade. 160 km/h eram praticamente nada para o rapaz e essa era uma das razões para os cabelos brancos de seus pais. No dia em questão, ele iria a uma festa na cidade vizinha. O pai havia negado, mas ele não cancelaria o encontro com a garota mais linda que ele já conheceu. Rainy lhe avisou sobre o perigo das pistas, já era noite e ele provavelmente iria beber. “Don’t worry, honey. Chego a tempo dos velhos acordarem pro café.” Foram suas palavras ao deixar a casa com seu sorriso travesso e um piscar de olhos para ela.
- Nós nem sabemos por quanto tempo você vai ficar aí. – Ainda de costas, ela alisou a testa e suspirou. – Como você pode fazer isso comigo, Josh? – Gritou ao se virar, os soluços de sua mãe já não lhe eram problema. – Você nunca tomou a droga de um cuidado, mesmo com mamãe e eu te avisando sobre isso.
Josh realmente chegou antes dos seus pais acordarem, por meio de uma ambulância, com uma perna quebrada, arranhões e queimaduras de segundo grau. Flashes da noite anterior surgiram na cabeça de Rainy e voltou a apertar os olhos, desmoronando ao lembrar da expressão nos rostos de seus pais. O desespero, a agonia e o medo. A culpa que insistia em jogar na própria cara. Deveria ter dito a ele para não ir, segurado, dedurado aos seus pais. Mas ele era seu irmão mais velho, afinal. Josh sempre se safou de toda e qualquer encrenca que se meteu, por que não foi assim dessa vez? Talvez porque a situação em si não era uma simples encrenca a qual eles estavam acostumados.
- Só me diga se você pensou na mísera possibilidade de como nós ficaríamos caso algo ruim acontecesse com você. – Apertou os olhos, as lágrimas já rolavam. Ela praticamente gritava. – É claro que não! Você só pensa em quebrar os seus próprios recordes.
Rainy sabia que não era exatamente dessa maneira. Mesmo aprontando tanto, ele era um bom filho e um ótimo irmão. Estava lá na primeira vez que um cara partiu seu coração e fez questão de ir até o mesmo e mostrar que não se mexe com os McCurtney. Estava lá quando a mãe teve depressão pós-parto ao dar a luz a quem seria a caçula da família, se esta não tivesse falecido pouco depois de nascer. Obrigou seu pai a parar de fumar e entrou na tão sonhada faculdade de Engenharia, orgulhando até aqueles que se recusavam. Mas ele tinha que ter essa obsessão por velocidade.
- A única coisa boa  que você fez foi bater contra o muro. – O riso sem ânimo voltou a sair de seus lábios, cruzou os braços. – Ao menos não matou ninguém. Ninguém além de você mesmo.
Enfermeiros ouviram a movimentação e já caminhavam em direção ao quarto para contê-la, mas sua mãe os impediu. Mesmo com o discurso de que atrapalharia os outros pacientes, Sra. McCurtney pediu para deixá-la terminar. Conhecia sua filha e sabia que era o único jeito de fazê-la se esvair de toda aquela tensão que lhe era totalmente nova e que parecia incontrolável.
Rainy parou e se sentou ao sofá que ela nem mesmo sabia que estava atrás dela. Abraçou-se e deixou que o choro tomasse conta de si, soluços altos ecoavam pelo quarto e nenhuma reclamação de Josh sobre o barulho e tudo que ela queria era uma resposta, qualquer coisa. Um grito, um resmungo, um assovio, um “cala a boca, pirralha”. Qualquer coisa que não fosse a droga do barulho da máquina informando seus batimentos cardíacos. Lembranças dele surgiam em sua cabeça estimulando mais lágrimas e ela apoiou os pés no sofá, podendo assim abraçar os próprios joelhos.
- Quem vai reclamar do tamanho dos meus vestidos e saias, hãn? – Sequer consiga enxergar alguma coisa e nem mesmo queria. Não quando a imagem a sua frente era aquela. Papai pode fazer isso por mim, era a voz de seu irmão ecoando em sua mente pessimista. Mas ela não queria ouvir do pai, ela queria ouvir dele.
- Quem vai passar os braços pelos meus ombros para afastar os caras bonitos de mim quando eu estiver em alguma festa? – Quis sorrir fraco, mas as lágrimas não lhe permitiriam.
A porta se abriu um pouco, era sua mãe que não ousou entrar e que passou despercebida pelos olhos e ouvidos da filha. Rainy se levantou, passando as mãos pelo rosto com brutalidade para limpá-lo. Chegou próximo à cama e parou. Os arranhões no rosto de Josh eram significativos, talvez alguns nem chegassem a cicatrizar. Você diria que as gatas se amarrariam nessas marcas, pensou ela. Suspirou e fechou os olhos, sentindo o peso da dor em suas costas.
- Não ouse morrer! – Disse baixo, ainda de olhos fechados. – Você não tem o mínimo de direito de nos deixar, Josh. E você sabe disso. – O tom de voz começava a aumentar, mas ainda não era significativo. – Só pense na droga que a minha vida vai ser se você nos deixar, entendeu?
Lágrimas rolavam pelos olhos de Sra McCurtney com aquela cena e se viu obrigada a entrar, não deixaria que sua filha fosse além daquilo, sabia o quanto era doloroso para todos e o quanto sua filha se culpava. O marido vinha logo atrás de si e dois enfermeiros os acompanhariam, por precaução.
- FAZ O FAVOR DE LEVANTAR DAÍ AMANHÃ, ENTENDEU? – Os mais velhos se abraçaram e sua mãe começou a chorar.  Rainy percebeu a presença dos outros, mas não se importou. – PARA COM ESSA MERDA E LEVANTA DAÍ! AGORA! – Os enfermeiros a seguraram e ela abraçou o primeiro que viu pela frente, sem nem saber quem era e se ele se importaria. Que se dane os outros, ela só precisava de colo.
Mas Josh continuava imóvel, como se seu sono fosse mais importante que as palavras duras de sua irmã. Rainy fechou os olhos com força, deixando que o resto de suas lágrimas escorresse, sendo cuidadosamente levada para fora do quarto enquanto o outro enfermeiro ia até o paciente, verificando se toda aquela gritaria havia causado algum efeito no rapaz.
Nada.
Nem mesmo um abrir de olhos ou um movimento em seus lábios.
Nada.
Nada além dos seus fracos batimentos cardíacos traduzidos em insuportáveis  pi pi pi.
Nada.

Nada além do torturante silêncio de Josh McCurtney.

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