- aviso: contém spoilers -
O filme nacional ‘Medida Provisória’
chegou aos cinemas na última quinta-feira, 14, e a trajetória até a sua
exibição não foi nada fácil. Dirigido por Lázaro Ramos e com grandes nomes
nacionais e internacionais no elenco, o longa teve sua estreia adiada em dois
anos em meio a diversos boicotes e a pandemia do covid-19.
Na trama, nós acompanhamos Antônio
(Alfred Enoch), sua esposa Capitu (Taís Araújo) e seu primo André (Seu Jorge),
vivendo suas vidas dentro do possível sendo jovens de 'melanina acentuada' num
país como o Brasil. Pessoas de classe média, são os únicos negros do prédio que
vivem e os olhares questionadores sobre a presença deles naquele lugar é sempre
evidenciado.
Duas coisas precisam ser ressaltadas: a primeiras é que o longa se inicia trazendo a normalidade da vida de pessoas pretas, o que é incomum em filmes do mesmo molde, que costumam focar unicamente na dor. Traz sofrimento, sim, seja pelos olhares de quem não aceita a presença deles ali, seja pelo confronto que é comum na vida daqueles que questionam as atitudes dos brancos, mas o sofrimento não é a única coisa que ronda a vida dos personagens. A segunda é que o filme foge da ideia de um, nas palavras do próprio diretor em entrevista ao Roda Viva da TV Cultura, 'favela movie', quebrando a história única de que pretos só se encaixam em posições de inferioridade. Não à toa, os personagens principais são todos graduados: Antônio, advogado; Capitu, médica e André, jornalista.
E essa normalidade dentro do possível é quebrada quando uma Medida Provisória 1888 — em clara referência ao ano da abolição e no enredo, não ironicamente, é determinada no dia 13 de maio, dia da anulação da escravidão — prevê que todos os cidadãos brasileiros que lembrem, mesmo que de longe, ascendência africana, devem retornar para a África. Há uma cena emblemática onde a inspetora Isabel (Adriana Esteves) lê a medida para dois dos seguranças que trabalhavam para ela. A câmera se aproxima do segurança negro, o temor em seus olhos, enquanto o, até segundos antes, colega de trabalho, sorri satisfeito ao segurá-lo com força.
E assim como nos períodos de
escravidão, o povo preto é retirado a força de seus lares, famílias, vivências
e raízes, e levados para uma realidade que não conhecem, não querem e não têm
escolha. Muitos são mortos no processo, mas o desdém e o desinteresse do
'Ministério da Devolução' são muito claros: é mais barato lidar com um cadáver
do que ter o trabalho de mandá-los embora. Todos os caminhos são aceitáveis na
tentativa de fazer o "Brasil branco de novo".
O filme, que brinca entre comédia,
thriller e drama, traz um misto de sensações desde a risada pela piada tão
atual, a identificação — seja pelas dores dos personagens, seja pelo absurdo que
vai se estalando aos poucos, diante dos nossos olhos e que em nada podemos
fazer — e, talvez a pior delas, que é o desamparo. A sensação de pequenez ao
perceber que a realidade daquela violência não está muito longe num país em que
um jovem negro é morto a cada 23 minutos.
Confira: resenha do livro 'Na Minha Pele' de Lázaro Ramos
Dentre várias cenas significativas, uma
delas chama atenção: quando, no desespero de conseguir circular livremente, o
personagem André pinta o rosto de branco. A cena, que se sustenta sem diálogo,
atinge uma dor de todos nós que, na infância e adolescência, já sonhamos em
sermos brancos e termos o privilégio que a cor mais clara poderia nos oferecer.
O longa toca na ferida ao trabalhar
temas como disseminação de fake news, relacionamentos interraciais e a fábrica
de memes que o país se tornou em meio a perversidade que vive desde o golpe de
2016. Golpe este, inclusive, relembrado na votação pela Medida Provisória, tão
chacota quanto foi a nossa realidade, seis anos atrás.
"Como é que a gente riu disso?" é
dito por André e traz a reflexão de como optamos pela piada ao invés do
confronto. É fato que temas importantes são discutidos e questionados através
de memes, mas qual o limite da piada? Será que empurrando as coisas com a
barriga e pensando que ninguém vai levar a sério é melhor saída? Essa coisa
toda não te lembrou um possível candidato que ganhou palco através de vídeos
"meme", sempre ridicularizado e ignorado que, no fim, ganhou o poder?
Acompanhe a conta oficial do filme e veja o cinema mais próximo que vai exibir o filme
Por fim, a briga pela sobrevivência tem
sido dentro e fora das telas. Mesmo com nomes de peso na produção e elenco e
tendo lotado salas em todo o país até o momento, ‘Medida Provisória’ luta para
ser exibido nos cinemas do Brasil, tendo apenas 150 salas disponíveis no país
todo, correndo o risco de ficar apenas uma semana em cartaz. Enquanto isso,
produções estrangeiras como Sonic 2 (Paramount Pictures) e Animais Fantásticos:
Os Segredos de Dumbledore (Warner Bors) possuem mais de mil salas cada um.
Com Elza Soares, Baco Exu do Blues,
Ricon Sapiência e Agnes Nunes na trilha sonora, 'Medida Provisória' escancara
uma ferida aberta no nosso país e que precisa ser discutida antes que a
barbárie nos atinja — ainda mais. O enredo, que mira num futuro distópico,
acerta no Brasil intolerante e negacionista de 2022. E, em meio as dores de um
país que nega sua história, sugere a utopia do afeto como alento em tanta dor.
2 Comentários
10/10
ResponderExcluirEu adorei esse comentário, porque é sucinto e verdadeiro HAHAHA
ExcluirObrigada, JP!